domingo, 26 de janeiro de 2014

“Deliverance” – Fim-de-semana alucinante – David contra Golias








   Há filmes assim. Filmes cuja simplicidade do argumento os torna em poderosos dramas difíceis de esquecer ou até mesmo de ignorar. Filmes que se tornam em retratos de tal força que se tornam, com o tempo, incontornáveis, obras  fundamentais na obra de um realizador, actor, actriz, produtor, argumentista ou até do mais simples técnico. “Deliverance – Fim-de-semana alucinante”, foi uma dessas obras.
   Quatro homens de negócios decidem fazer um fim-de-semana radical. Pretendem descer, de canoa, o Rio Cahulawassee, antes que este e o vale que o circunda sejam inundados pela construção duma barragem. Tudo corre bem até os aventureiros se aperceberem de que, para além do próprio rio, existem outros perigos á espreita.
   O filme começa com as personagens em “voz off” a discutirem sobre o desaparecimento dos habitats naturais e a corrupção da sociedade moderna, enquanto o genérico decorre sobre imagens da destruição desses mesmo habitats, neste caso, o desaparecimento do Rio Cahulawassee, a sua planície e a pequena cidade de Aintry, onde irá terminar a viagem dos quatro amigos.
   
Logo desde o início, pouco depois da cena antológica do duelo musical entre Drew e um rapaz local (o tema “Duelling Banjos”, ganhou um “Grammy”, em 1974, pela Melhor Performance Instrumental de Música Country), até á última imagem do filme ( a mão (de quem?) que se ergue do fundo do lago), vamo-nos apercebendo que aquele não será um passeio fácil, quer seja pela ameaça dos habitantes locais (a espingarda que se vê ser colocada numa viatura ou a visão ameaçadora, pouco antes de começar a descida do rio, por entre as árvores, dos mesmos habitantes), quer seja pelos próprios aventureiros a quererem demonstrar, totalmente vulneráveis contra um meio ambiente hostil, a sua masculinidade.
   Nunca um rio, aparentemente calmo, foi tão ameaçador como este e uma vez mais apercebemo-nos disso na cena em que, pouco depois de se iniciar a descida, as canoas passam por baixo duma ponte na qual se encontra o rapaz e o seu banjo que os olha com ar de preocupação sem responder aos acenos e sorrisos de Drew.  A partir deste ponto acabam os últimos traços de civilização e começa uma jornada através do desconhecido.
   
O rio, de certa maneira, personifica as forças da natureza que muitas vezes empurram os homens para destinos cada vez mais aventurosos, testando as suas capacidades  e onde se evidenciam mais  os conflitos entre campo e cidade. Os aventureiros sentem a necessidade de se entregar (daí o título original “Deliverance”) e se libertarem do seu próprio mal (fruto da educação citadina) e confrontarem com forças adversas como a natureza, transformando este “medir de  forças” numa quase alegoria biblíca do Antigo Testamento, do combate entre David e Golias, aqui com consequências diferentes do confronto de então.
   
O tom que John Boorman, realizador conceituado de filmes como “Point Blank – À Queima-Roupa” (1967) um thriller policial de traição e vingança com Angie Dickinson e Lee Marvin; ou “Hell in the Pacific – Duelo no Pacífico” (1968), um filme sobre a luta pela sobrevivência entre dois soldados, um americano e um japonês numa ilha do pacifico no final da IIª Guerra Mundial e que se pode considerar quase como um prólogo a “Fim-de-semana Alucinante”, dá ao filme é claustrofóbico e sombrio e está de acordo com o argumento de James Dickey, ( que interpreta o xerife de Aintry no final do filme), baseado no seu romance e para o qual Boorman (não creditado) contribui com algumas ideias. È um exercício cinematográfico estilizado, filmado ao longo de cerca de 40 milhas ( mais ou menos 60 quilômetros) de um rio traiçoeiro,  ajudado por uma fotografia de cortar a respiração.
   
O ritmo é deliberadamente lento para que tenhamos tempo para pensar em tudo aquilo que vemos desfilar perante os nossos olhos, principalmente, após a violação brutal a Bobby por dois montanheses que acontece perante os olhos de um Ed indefeso  que só espera que o mesmo não lhe vá acontecer, percebemos que nunca mais nada será igual para aqueles quatro aventureiros. Boormans queria que o filme fosse um grande sucesso e como tal queria os melhores actores para os papéis dos quatro aventureiros: James Stewart, Marlon Brando, Henry Fonda ou Lee Marvin. Todos recusaram os papéis, Stewart e Fonda não concordaram com a temática aventureira do filme; Brando e Marvin achavam-se velhos demais para interpretar qualquer um daqueles papéis e foi o último que sugeriu ao realizador que usasse actores mais novos.
   
Ronny Cox, Ned Beatty, Burt Reynolds, Jon Voight
Com um elenco de excepção, onde se destaca o ex-duplo de cinema, Burt Reynolds, como Lewis, o mais másculo do grupo e que tudo fará para manter essa imagem, líder, não assumido do grupo, mas que se vê obrigado a sobressair como tal, quando os quatro não se conseguem entender sobre o que fazer ao cadáver do montanhês; Ned Beatty  e Ronny Cox, ambos em papéis de estreia, são respectivamente Bobby e Drew, são os elementos mais fracos do grupo, são homens completamente fora do seu meio ambiente e isso percebe-se logo desde o início; mais impressionante é Jon Voight, como Ed, o homem que tem de passar a linha que divide  racional do irracional, ele tem que se assumir a sua quota-parte de homem másculo quando sente que tal é necessário (grande parte do filme, ele permanece como estando, tal como os seus dois outros companheiros, fora do seu elemento natural). Ed acaba por ser o mais perigoso dos quatro, porque combina os dois  extremos da natureza humana e utiliza-os nefastamente para salvar a sua vida e a dos seus companheiros, o que não muda em nada o facto dele e dos seus amigos personalizarem tudo aquilo que é condenável aos olhos da sociedade.
   “Deliverance”, que tinha custado uns meros 2.000.000 de dólares,foi um enorme sucesso de critica e de bilheteira. Em 1972, tornou-se o quinto filme mais visto nesse ano nos Estados Unidos, atingindo um total de 46.000.000 de dólares. No ano seguinte ainda rendeu mais 18.000.000 de dólares nas salas americanas em que se manteve em exibição.
   Dificil de classificar, “Deliverance”, não se inclui em nenhum dos géneros habituais, até porque não tem nenhum dos “clichés” habituais neste tipo de filmes e dificilmente se conseguirá incluir naquelas visões comportamentalizadas do mundo, está muito para além disso. Mas duma coisa temos a certeza: é um filme que atira com todos os conceitos de sociedade pela janela fora e deixa-nos a pensar.
   O filme foi nomeado para diversos prémios, nomeadamente para cinco Globos de Ouro, incluindo Melhor Filme Drama e Melhor Realizador e três Oscares da Academia, incluindo Melhor Filme do Ano e Melhor Realizador, mas ficou-se por ai. Mas ao longo dos anos, o filme foi adquirindo a sua importância e, finalmente, no centenário da Sétima Arte integrou a escolha do “American Film Institute  100 Years – 100 Thrillers” posicionando-se no 15º lugar.
   Em 2008, “Deliverance” foi seleccionado pela Biblioteca do Congresso para Registo e Preservação no Museu do Cinema dos Estados Unidos, por ser Cultural, Histórica e Esteticamente significante.

Nota: as imagens e vídeos que ilustram o texto foram retirados da Internet







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