O Tempo passa sem parar, como um rio que corre em direcção ao mar, dissipa-se nas brumas da Memória colectiva... É o Tempo que serve a memória ou é a memória que serve o Tempo?
segunda-feira, 19 de maio de 2014
Imperdoável – O Ocaso do Western
Em 1992, depois do triunfo de “Dances with
Wolves- Danças com Lobos” (Kevin
Costner, 1990) que reanimara o Western, o género mais querido, juntamente com o
musical, do cinema, da melhor maneira possível, pareceu que este género popular
estava de volta para trazer o público, que agora estava mais virado para a
ficção científica, de volta. Mas a sensação que ficou foi que o género, apesar
de ainda não estar morto e enterrado, parecia estar moribundo. Era tempo de
fazer um elogio que, ao mesmo tempo o homenageasse condignamente.
"Unforgiven - Imperdoável” é a mais bela página que se pode escrever
sobre um género que, afinal, esteve na génese do cinema, "The Great Train
Robbery"de Edwin S.Porter é o primeiro Western da história e foi
realizado em 1903.
Ao tomarem conhecimento duma recompensa
lançada por um grupo de prostitutas a quem matar o homem que deformou uma
delas, dois ex-foras-da-lei juntam-se a um jovem para tentar ganhar a
recompensa e assim garantir o seu futuro e dos seus familiares. Ao chegaram á
cidade de Big Whiskey, no Wyoming, são confrontados com uma oposição que não
contavam.
O argumento foi escrito, em 1976, por David
Webb Peoples que, entre outrosfilmes,
participou na escrita do argumento de “Blade Runner – Perigo Eminente”, a
obra-prima futurista de Sir Ridley Scott de 1982. Inicialmente intitulava-se
“The Cut-Whore Killings”, depois, com receio de alguma polémica, o título foi
mudado para “The William Munny
Killings”. O argumento andou anos e anos de estúdio em estúdiopara ver quem lhe pegava. Clint Eastwood
adquiriu os direitos da sua adaptação, mas atrasou o projecto, em parte, porque
queria estar mais velho para melhor se
identificar com a personagem e poder moldá-la a seu bel-prazer, uma vez que
decidira que iria ser a sua última personagem num Western.
“Imperdoável” começa por ser um filme que olha
para o velho Oeste como se este fosse uma novidade. Os pistoleiros
profissionais tornaram-se de tal maneira uma espécie em vias de extinção que os
jornalistas os seguem em busca das suas histórias ( a personagem de English
Bob, um caçador de prémios, fabulosamente interpretado por Richard Harris, cuja
fama o precede, mas que na realidade não passa de um engano,graças ao jornalista/biógrafo que com ele
vem,é disso exemplo); homens que
dormiram noites ao relento, estão agora a construir as sua próprias casas;
William Munny , outrora um ladrão e assassino, sobrevive graças á sua criação
de porcos. Em 1880 (ano em que se passa o filme), o Oeste vive das memórias de
homens que agora vivem numa espécie de classe média e é á volta destas memórias
que esta obra-prima gravita sem hesitar.
O filme é sobre a passagem do tempo e isso
vê-se no seu próprio visual, reflectida na fotografia quase genial de Jack
N.Green. Logo no início vemos uma casa, uma árvore, um homem e uma campa e o
sol está a pôr-se, não só no homem, como também sobre a era que ele representa,
é de uma genialidade quase absoluta de tão simples que é. Mas, mais á frente,
ainda no campo visual, encontramos cenas exteriores que mostram a vastidão da
terra onde o Western reinou durante
décadas. Já os interiores diurnos são fotografados em forte contra-luzde modo a tornar as figuras interiores
escuras e, por vezes, difíceis de ver.
Em "Imperdoável" todos os símbolos
do western estão invertidos: o xerife que sempre representou o bem e a moral,
é, na realidade, o vilão (excelente interpretação de Gene Hackman)e o homem sem
qualquer tipo de escrúpulos que impõe a lei na cidade com punho de ferro, não
autoriza armas de fogo na sua jurisdição e faz cumprir essa proibição com
espancamentos sádicos e públicos, a roçar a humilhação e depois regressa á
beira-rio onde constrói a sua casa; os supostos vilões, apresentados como sendo
maus como as cobras (interpretados sobriamente por Clint Eastwood e Morgan
Freeman), que não passamde velhos que
já esqueceram uma parte do seu violento passado, mas que, de tempos a tempos,
ainda os assombra, são os verdadeiros heróis do filme. Entre todas estas
personagens, gravitam algumas outras que, apesar de secundárias,têm a sua importância na acção: desde
logo”Schofield Kid” (Jaimz Woolvett),
um incompetente pretenso herói,desafia
Munnya ir com ele em busca da
recompensa,míope que não consegue
acertar em nada, mesmo tendo um revólver modelo Schofield (daí ter-se baptizado
a si próprio com esse nome) da “Smith & Wesson;Madame “Strawberry Alice” (Frances
Fisher),prostituta que teve a ideia de
lançar a recompensa porque quer vingança sobre aqueles que mutilaram “Delilah”
(Anne Thompson), uma das suas meninas; e ainda “Skinny Dubois” (Anthony James),
dono do bar e bordel, tem outras preocupações acerca dos acontecimentos: como
pagou muito dinheiro por Delilah, que após ser mutilada pelos cowboys, já não
lhe vai compensar o investimento, portanto ele quer ser recompensado.
Eventualmente a história volta aos termos
clássicos do Western quando o xerife corrupto se confronta com o fora-da-lei,
transformado em homem justo. A história torna-se, menos sobrea caça ao prémio e mais sobre a necessidade,
mútua e pessoal , de resolver a questão entre ambos, já que se encontraram
algures no passado e veremos, posteriormente,o jovem William Munny emergir da concha da idade onde se escondeu e
voltar a ser o homem temeroso que fora, como também acontece no longo acto
final em que o mesmo Munny eficiente e omniscientemente se transforma numa
espécie de vingador das humilhações a que o seu amigo Ned foi sujeito: um
trabalho de montagem eficiente, em que os elementosda cena são montados de modo estrategicamente
deliberado para serem suficientemente credíveis e que nos trazem á memória as
personagens que Eastwood interpretou nos seus westerns anteriores: o espírito á
procura de justiça em “O Pistoleiro do Diabo”; o justiceiro Josey Wales de “O
Rebelde do Kansas” e o Pregador sem nome de “O Justiceiro Solitário” e
percebemos que o velho profissional ainda não se esqueceu de como se faz.
Clint Eastwood, o realizador, ao baralhar e
dar de novo, dá uma dimensão diferente e original ao género e aproxima-se duma
quase genialidade magnifica, que mantém no próprio título do filme. Será que
Munny procura obter o perdão da sua falecida esposa e também de todos os outros
que enganou, violentou ou matou? A sensação com que se fica é que ele ainda se
sente assombrado pela culpa: está reformado, mas, ao aceitar ir em busca do
dinheiro da recompensa, pois precisa dele para sustentar os seus filhos, apesar
de achar que eles ficariam melhor servidos se o seu pai não andasse a correr
risco de vida contra pistoleiros mais novos e certamente mais experientes,
mostra que não se emendou. Eastwood não se alargou em explicações sobre o
porquê daquele título, mas, existe no filme um momento em que talvez essa
explicação seja aflorada: logo após ter sido baleado, Little Bill diz “eu não
mereço isto…morrer assim, desta maneira…eu estava a construir uma casa.” Ao que
Munny responde “Merecer, não tem nada a
ver com isto”. Mas, na realidade, até tem porque, apesar de Ned eDelilah não receberem aquilo que lhes é
devido, William Munny certifica-seque
os outros o recebem. É esta moral, por vezes implacável, em que o bem
eventualmente silencia o mal, que estáno centro do Western, e Clint Eastwood, tal como John Ford já o fizera
na sua obra-prima “The Searchers- A Desaparecida” (1956), não tem receio de o
dizer.
Quando estreou, “Imperdoável”, foi um
inesperado sucesso de bilheteira em todo o mundo. Com um orçamento estimado em
cerca de 14.400.000 dólares, a receita em todo o mundo foi de cerca de 159.200.000
dólares, nada mau para um filme dum género já considerado extinto. Mas o
triunfo maior do filme seria em prémios. A primeira surpresa viria dos Globos
de Ouro onde arrecadaria dois dos quatro Globos para que estava nomeado,
incluindo um para Clint Eastwood como Realizador. Conforme avançava a temporada
dos prémios, continuava a caminhada de “Imperdoável” em direcção ao Olimpo do
Cinema. Seria nos Oscares que o triunfo do filme iria ser determinante. Com
nove nomeações para os Oscares, "Imperdoável" venceu quatro,
incluindo Melhor Realizador e Melhor Filme do Ano para Clint Eastwood. Finalmente
o cinema olhava com respeito e deferência para um dos seus maiores icons. Foi o consagrar duma carreira imaculada de mais dequarenta anos.
Caberia a Clint Eastwood, actor, produtor e
realizador, a missão de escrever o epílogo do Western, na forma daquele belíssimo plano
final (igual ao início, mas mais completo) de um pôr-do-sol, uma campa e junto dela a
imagem de William Munny que se dissolve na cena enquanto correm os créditos
finais, em que o actor/realizador, agradece a Don (Siegel) e a Sergio (Leone),
os seus mentores, subentenda-se, o que fizeram por ele, mas, principalmente, o
que fizeram pelo western enquanto género cinematográfico.
Em 2004, “Imperdoável” foiintroduzido no Museu Nacional do Cinema por
ser cultural, histórica e esteticamente significativo para o género Western. Em
2008 o “American Film Institute” considerou-o o quarto melhor Western de
sempre, atrás de “A Desaparecida”, “O Comboio Apitou Três Vezes” e “Shane” e
incluiu-o na sua lista “100 Anos…100 Filmes”.
Nota: as imagens e vídeo que ilustram o texto foram retiradas da internet
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